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sábado, 4 de agosto de 2007

Notas sobre o problema causado na discussão ética e moral a partir dos postulados kantianos


Com a aparição das “Críticas” de Kant (1724-1804), toda a filosofia moderna vem defendendo mais ou menos explicitamente e por razões e sistemas muito diversos, a separação intransponível entre o mundo da metafísica e o mundo da moral, entre o plano especulativo e o prático, entre o ser e o dever ser, entre a realidade e o valor entre seus juízos correspondentes, quer dizer, há uma recusa de toda conexão entre o objeto axiológico e da ética e o da metafísica.
Kant colocou fora do alcance válido da inteligência especulativa o mundo noumênico ou das em si, em sua Crítica a razão pura, concluindo com um agnosticismo metafísico, em sua segunda Crítica tentou reabilitar de algum modo esta mesma realidade e a correspondente capacidade humana de capta-la por um caminho distinto da inteligência, e da Razão prática e vontade, dando valor para as coisas em si, não como objetos, mas como base indispensável de toda a atividade ética.


A realidade inalcançável e por sua vez inatacável pela via da razão especulativa, colocada além do âmbito de sua atividade válida, surgirá no domínio da moral como postulado não demonstrado, mas indispensável para seu exercício. Por um lado, colocou na ordem da Razão especulativa, a impossibilidade radical de elaborar uma metafísica; por outro, na ordem da Razão prática e da vontade, o mundo dos postulados éticos e os respectivos juízos de valor. Deste modo fica estabelecida de forma intransponível a separação entre a metafísica, impossível para a inteligência humana, e a ordem moral, que se impõe como um fato para a vontade pela “Razão prática” em um imperativo, cuja obrigação emerge a priori de elementos puramente formais dessa mesma razão, e a independência, desde seus mesmos fundamentos, entre a ordem ontológica e a ordem ética erguido sobre bases puramente formais, e entre ele e um mundo axiológico de valores. A separação da moral de seu fundamento metafísico é o patrimônio kantiano herdado e conservado pela filosofia moderna até nossos dias. A ordem de ser e do vir a ser tornaram-se incomunicáveis e expressam para a filosofia moderna um dualismo irredutível.

A partir de Franz Brentano, (1838-1917), com o redescobrimento da intencionalidade e da atividade espiritual, já a muito tempo tratado por Santo Tomás de Aquino (1395 -1455), a filosofia contemporânea se voltou tanto contra o positivismo e psicologismo do final do século XIX como também contra Kant e o idealismo transcendental. Sem embargo, não havia conseguido uma evasão definitiva do transcendentalismo, pois enquanto no plano gnosiológico não alcança a realidade, detendo-se no puro “objeto” vazio de “ser”, na moral, e em geral, na atividade prática, ainda em seus esforços por combate-lo é, todavia auxiliadora do pensamento kantiano.

Max Scheler (1874 -1928) e N. Hartmann (1882-1950), são dois pensadores que mais apropriadamente se destacaram em tratar o formalismo a priori da moral kantiana, mas sem superar sua dualidade.


A crítica que Marx Scheler dirige a Kant, e com ele toda escola axiológica contemporânea, se bem que seja válida não chega, porém a raiz do problema que arruína desde sua origem a moral do filósofo de Königsberg. Os valores introduzidos por Scheler em que se apóia toda a moral não são puramente formais, destituídos de conteúdo como o imperativo categórico de Kant, mas tampouco atingem o ser, não subjetivos apenas válidos universalmente e independentemente da subjetividade, mas não por via intelectual ou de objetos, senão pela via emotiva de simples validade. A atividade moral implica uma pessoa que captando esses valores os realiza ou destrói os vícios. O valor da moral consiste precisamente na realização de valores hedônicos, vitais, espirituais e religiosos, conforme a hierarquia em que nos são dados. Os valores passam do dever ser para o ser mediante a atividade moral da pessoa. Porém é preciso perceber que na filosofia de Scheler, o fundamento de toda atividade moral se apóia em valores e em uma pessoa destituída de ser. Deste modo semelhante esforço inicialmente bem orientado do filósofo fazia uma articulação da moral na realidade, mas, reincide na moral kantiana que combate, a causa da separação do valor e do ser. Ambos os sistemas, antagônicos entre si, convivem em definitivo no que a moral carece de raízes em seu ser, e se ligam nas formas a priori subjetivas, em um caso, nos valores materiais ou de conteúdo puramente não-lógicos ou não-metafísicos em outro.

Há no sistema dos dois filósofos uma recusa de bases já formuladas por seus predecessores na tradição como Santo Tomás. Há um hiato que distingue radicalmente as duas filosofias, e que impede a solução dos problemas e o avanço posterior da discussão filosófica do tema, que consiste no seguinte: São Tomás inserindo a ordem moral no ser sob seu aspecto de bem, pode dar uma base metafísica e intelectual de que irremediavelmente carece Scheler, precisamente por não haver superado o dualismo metafísico moral de Kant. Tal questão merece ser estuda, por você que está lendo agora estas notas. È preciso refletir na influência enorme que Kant exerce em nossas universidades e em toda a nossa discussão a respeito da moral, e lançar um olhar para o que foi “esquecido” ao longo dos séculos, como se nunca houvesse existido com as conseqüências desastrosas para a moral.

O paradoxo é que com esta separação aberta entre a moral e a metafísica se pretende, a partir do mesmo Kant, levantar o edifício moral sobre bases mais sólidas, postas protegidas de todo ataque dirigido contra a metafísica seu objeto e o valor da inteligência. E com estas intenções temos a impressão que se procura por diversos caminhos substituir a moral de fundamento metafísico por outra de base formal ou puramente axiológica, uma moral heterônoma cujas raízes se inserem e se alimentam do ser e, em última instância, do Ser absoluto transcendente ao homem, por uma moral autônoma, que emergindo e nutrindo-se nas últimas exigências práticas da vontade, quando não da emotividade ou sensibilidade, vale hic et nunc para o homem, independentemente de todo valor real absoluto.

Subjacente à moral axiológica contemporânea está a conjunção de dois princípios a saber: o agnosticismo metafísico, nem sempre confessado, e; um esforço para dar bases incontestáveis a moral, que leva – por suposição ao primeiro – e busca por todos o meios possíveis uma fundamentação a-metafísica da ética. E neste agnosticismo metafísico que da origem, conforme o caso, a uma fundamentação quer formalista quer axiológica da ética, nós sempre tropeçamos com o sistema de Kant.

Porém a realidade é outra. As coisas não são nem acontecem como os filósofos querem e dizem, senão simplesmente como são. Já a verdade, semelhante a moral desvinculada da ordem metafísica e posta, segundo seus representantes, ao abrigo de todo ataque da razão, desde que renuncie a sustentar-se na ordem especulativa, esta destituída, ipso facto de todo apoio ontológico e de toda a correspondente justificação intelectual e privada por isso mesmo da única fundamentação objetiva possível, uma vez que no âmbito da moral, como em qualquer setor filosófico, uma verdade ou um sistema de verdades ou se demonstra pela inteligência justificando-se perante ela ontologicamente, quer dizer, como objeto-ser, como algo que se imponha pela evidência, ou não se justifica ao todo. O objeto da filosofia compreende todas as ordens da realidade, mas a própria filosofia como disciplina ou é racional ou fica exposta a todas as arbitrariedades e desvarios subjetivos sem possibilidade de crítica, e então já não é filosofia. A inteligência é para o homem a única porta que dá acesso imediato à verdade. Renunciar a ela e buscar por outros caminhos essa verdade, na realidade não é senão cegar a única fonte de luz que possui. Agora então, se toda justificação possível da ordem moral deve se realizar pela via intectual e se toda atividade da inteligência se apóia e recebe seu valor do ser e, em última análise, do Ser absoluto de Deus, toda fundamentação da moral deve ser por isso mesmo ontológica, metafísica.

Este é o problema central, da moral, que é análogo e solidário ao problema fundamental do conhecimento. Assim como no plano especulativo se aborda o problema gnosiológico acerca do alcance e valor objetivo do conhecimento, assim no plano da atividade prática coloca-se o problema moral de saber se a atividade humana esta ou não sustentada e regulada por exigências ontológicas.Trata-se com efeito de saber, em geral, se a atividade humana se desenvolve no seio de sua própria e exclusiva imanência, sem nenhum contato nem dependência com o mundo exterior (que seria neste caso uma simples projeção fenomênica sua), ou se ao contrário, toda ela esta aberta para o ser transcendente que a condiciona e determina como seu fundamento e seu fim, assim na ordem especulativa como na ordem prática e “poiética”.

A solidariedade dos problemas aparece em todos os grandes sistemas filosóficos. O idealismo transcendental – já virtualmente pressuposto em Kant – que nega a dependência da atividade intelectual em relação ao ser extramental, nega logicamente a relação da vontade com seu objeto, e o autonomismo da inteligência na determinação do objeto metafísico é autonomismo prático na determinação da lei moral para a vontade livre. Não é de outra forma que a fenomenologia contemporânea, que na ordem especulativa reduz o alcance da intenção do objeto da inteligência, despojando-o do ser no seio sua própria imanência, a ordem prática moral reduz a intencionalidade dos bens ou fins ontológicos implicados na atividade da vontade para “valores” ilógicos desprovidos do ser. Caso seja negado ou posto em dúvida o valor real do objeto da inteligência, ipso facto cai também o valor real dos fins em que se apóia a atividade livre (e portanto a moral) da vontade.